Tornou-se prática pioneira do governante cearense, anunciar de véspera a retirada de direitos coletivos e individuais do serviço público estadual, direitos conquistados a duras penas por meio de lutas homéricas e heroicas. O pioneirismo dessa atitude macabra do referido gestor, endossada por sua base de apoio político na Assembleia Legislativa (ALCE), está no fato do anúncio acontecer na véspera de datas, simbolicamente, importantes para o cristianismo. Quando não do Natal (nascimento de Cristo), na Páscoa (ressurreição e ascensão aos céus do filho do Criador).
Passemos à contextualização das primeiras iniciativas, para na sequência focarmos na mais recente e que adota como justificativa a crise sanitária e econômica causada pelo COVID-19. O fato é que a famigerada pandemia tem assolado o mundo, deixando um rastro de mortes e desalento, abrindo um flanco para discussões sobre o futuro da humanidade, principalmente, atualizando com mais intensidade a tese de Rosa Luxemburgo: “Socialismo ou Barbárie”.
Diante dessa indicação luxemburguiana, o governo do Ceará tem seguido o rumo da barbárie, por adotar a linha econômica e necropolítica do neoliberalismo. Ao segui-la, em 2016, na véspera de Natal, o(a) servidor(a) público(a) recebeu dois presentes de grego, verdadeiros Cavalos de Troia.
Primeiro, a aprovação da Emenda Constitucional (EC) nº 88, de 21 de dezembro de 2016, com a instituição do Novo Regime Fiscal. Essa EC restringiu os gastos públicos em despesas primárias, por exemplo, saneamento básico e financiamento das despesas de custeio das universidades públicas (UECE, UVA e URCA); dificultou a realização de concursos públicos para diversos órgãos de serviços essenciais no Estado (saúde, educação, etc.), no intuito de aumentar as reservas fiscais para pagamento de juros e amortizações da “eterna” dívida pública. Pagamento destinado aos bancos e banqueiros, além de assumir a isenção fiscal oferecida a industriais e outros empresários que atuam nas plagas cearenses, sugando a riqueza produzida pelos(as) trabalhadores(as) assalariados(as) e informais e explorando até o limite do suportável sua força de trabalho.
Com essa medida aprovada pelo parlamento cearense, após mensagem nº 8.070, em regime de urgência, encaminhada pelo governador Camilo Santana (PT), o serviço público cearense sofre um duro golpe com o congelamento das despesas primárias correntes por dez anos, com repercussão negativa para o custeio de todos os órgãos públicos. Aqueles órgãos que atualmente já têm dificuldades de manter seus serviços básicos funcionando por escassez de recursos, como é o caso das universidades estaduais (UECE, UVA e URCA), estão sob o risco de ter um colapso financeiro com o congelamento dos gastos por uma década (SINDUECE, 2016).
Segundo, a antecipação ao próprio governo golpista e/ou ilegítimo do presidente Michel Temer, quando encaminhou para aprovação do parlamento a Mensagem nº 8.073/2016 que, ao chegar na ALCE, converteu-se em Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 11/16 e, depois de aprovado, Lei nº 167, de 27 de dezembro de 2016. Esta peça legal aumentou de 11% para 14%, a contribuição da alíquota previdenciária de trabalhadores(as) ativos(as) do serviço público. O PLC foi votado em 22 de dezembro de 2016, na dinâmica do período natalino, época de anúncio de “boas novas”, exceto para as diversas categorias do funcionalismo estadual.
Um terceiro episódio, anunciado pelos poderes executivo e legislativo que fere os(as) direitos de servidores(as), ocorreu recentemente, véspera do Natal de 2019, quando, seguindo a linha de Paulo Guedes e Bolsonaro, o governo da terra que pariu “Dragão do Mar” aprovou a contrarreforma da Previdência Estadual. Pior presente de Natal que alguém poderia receber, verdadeiro veneno amargo que veio junto com bombas de gás lacrimogênio, spray de pimenta e cassetetes, em virtude da truculência do batalhão de choque da polícia militar. O conjunto compõe um coquetel de agressões ingeridas por aqueles(as) que resolveram protestar e resistir nas proximidades da Assembleia Legislativa, contra a subtração de mais um direito social conquistado.
Como quarto ponto, ocorrido em abril de 2020, trata da “postergação [suspensão], até 2021, da implantação em folha das ascensões funcionais referentes ao exercício de 2020 de todos os agentes públicos estaduais, vedado pagamento retroativo; […] vedação enquanto durar a pandemia no Estado, da nomeação de candidatos aprovados em cursos públicos” (RESOLUÇÃO CONSELHO DE GOVERNANÇA FISCAL n. 01/2020).
Aproveitando-se da situação de calamidade pública em que o COVID-19 colocou os entes federativos e a própria nação brasileira, Camilo Santana (PT) e seu staff de assessores, orientados por Mauro Filho, botaram em prática os aspectos já previstos desde 2016, quando foi aprovada a EC 88/16, como denunciou o SINDUECE.
Ampliando o raio de ação das maldades a PEC 03/16 [EC 88/16], em seu Artigo 45, nos incisos de I a VIII reproduz o conteúdo da PEC 55/16 [EC 95/16] com um golpe de morte aos(as) servidores(as) públicos(as). As vedações, das quais tratam os referidos incisos reduzem o serviço público estadual a pó. A aplicação do seu conteúdo impede ascensão e progressão nas carreiras, reajuste ou reposição salarial, realização de concursos públicos, mudança de regime de trabalho de 20 para 40 horas ou pedido de dedicação exclusiva. Essas medidas tratadas pelo governo como fundamentais para o “equilíbrio financeiro” e o “desenvolvimento sustentável” têm uma finalidade basilar que é o desmonte do serviço público para garantir investimentos que deem sustentação à lucratividade do capital financeiro e especulativo.
É flagrante na iniciativa do governo o sacrifício que recai sobre as costas do servidor público e a atitude perdulária para beneficiar o capital especulativo, já que está prevista, na mesma PEC 03/16 [EC 88/16], a isenção de inclusão no congelamento dos gastos das “despesas com o aumento de capital de empresas estatais não dependentes” (Art. 43, § 7º). Estas empresas, de acordo com nota da Auditoria da Dívida Pública, “são pessoas jurídicas de direito privado e operam escandaloso esquema de transferência de recursos públicos para o setor financeiro privado, tendo em vista que vendem a investidores privilegiados, com desconto que pode chegar a 60%, debêntures com garantia real (dada pelos entes federados), pagando juros estratosféricos que podem ultrapassar 20% ao ano”. O efeito devastador desse esquema já foi sentido pelo povo grego, sendo este um dos responsáveis pela quebradeira na economia da Grécia (SINDUECE, 2016).
Dessa vez o filisteísmo de Camilo Santana (PT), ao avisar seu mais novo golpe no serviço público, teve uma alteração na data da véspera, que se transferiu dos festejos natalinos para a Páscoa, deslocando-se do nascimento para a ressurreição de Jesus Cristo. No entanto, suas ações draconianas seguiram o curso como um cálculo racional e uma verdadeira equação matemática, na linha política sugerida por Maquiavel em “O Príncipe”.
Pergunta-se: por que o alvo do governador é sempre o serviço público para desferir suas maldades e não os bancos e banqueiros, que continuam sendo beneficiados com os juros e amortizações de uma dívida pública, a qual quanto mais se paga, mais se deve?
Só em 2019, o tesouro estadual destinou a cifra de um bilhão, quatrocentos e cinquenta e um milhões, oitocentos e cinquenta mil e oitocentos e vinte reais para o pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Algo inconcebível e bizarro se a lógica fosse a humanização da vida e não a valorização do mais valor como exigência do capital.
Por que o governante não responsabiliza as grandes fortunas do Estado e começa a taxá-las para que empresários(as) parasitas comecem a pagar pela crise em curso? Na divulgação feita pela revista Forbes (2019), aparece uma lista de 15 exploradores(as) da força de trabalho cearense, a quem se atribui o adjetivo de “bilionários”.
Cândido Pinheiro, fundador do Hapvida, é o homem mais rico do Ceará. Com fortuna avaliada em R$ 7,6 bilhões, o médico e fundador do grupo ocupa a 26ª posição entre os bilionários no País. O IPO da operadora de saúde colocou outros dois nomes na lista da Forbes, Jorge Lima e Cândido Júnior. Filhos do fundador e donos de 20% da empresa, eles têm, cada um, fortuna avaliada em R$ 3,8 bilhões, ocupando a 67ª posição no ranking nacional.
Acumulando R$ 5,76 bilhões, Consuelo Dias Branco ocupa o segundo lugar no Ceará e o 42º no País. O sobrenome aparece seis vezes na lista, com as estreias de Ivens Júnior, Cláudio, Marcos, Maria das Graças e Maria Regina. Cada um deles tem fortuna avaliada em R$ 1,15 bilhão.
A lista ainda conta com Mário Araripe e família, com R$ 5,5 bi, ocupando o 47º. Eles são donos do fundo Salus, que controla a gigante de energia Casa dos Ventos. Amarílio Macêdo e família, da indústria de alimentos J. Macêdo, têm R$ 3,5 bilhões, ficando na posição 72 do ranking. Deusmar Queirós e família, da Pague Menos, têm R$ 3,2 bilhões, ficando em 76º. Carlos Jereissati e família, da La Fonte Participações, controladora do Iguatemi, têm R$ 2,2 bilhões, em 105ª colocação. Everardo Telles e família, do Grupo Telles, têm R$ 1,25 bi, em 156º lugar, Aristênio Canamary do grupo Confiança, tem 1,15 bi, em 160º lugar (MAGNO, 2019) .
É necessário romper com essa lógica desigual e combinada do capital financeiro e especulativo, bem como de um Estado que a ela serve incondicionalmente. Mostrar que vidas humanas, propriamente da classe trabalhadora, importam mais que os lucros de banqueiros e industriais é uma bandeira imprescindível, principalmente no atual contexto de pandemia.
Dessa forma precisamos, mesmo em situação de distanciamento e confinamento social, nos posicionar contra as atitudes maquiavélicas do governador petista, desmascarando sua subserviência aos interesses do capitalismo senil, genocida e necrófilo. Nesse momento devemos continuar denunciando a política de tal governante, que calcula racionalmente as chances imperativas de desferir a espada do Estado sobre os direitos sociais adquiridos, em especial, de servidores(as) públicos(as).
Destacamos, ainda, a importância de que as entidades sindicais que representam as diversas categorias do funcionalismo estadual encontrem um ponto de congruência para agir com solidariedade de classe e direcionar suas forças para combater tais avisos de véspera. Contra aqueles que têm alimentado a obsessão da trupe no poder ao querer descontar os sintomas da crise econômica, originada, seja pela falência do capital e/ou pandemia, sempre, nos proventos do(a) servidor(a) público(a) e não nos lucros dos bancos e na acumulação de capital pelas grandes fortunas.
Ousar lutar, ousar vencer!